Relicário da vida
“Coração: é um lugar onde guardamos tudo que há de melhor em nós - relicário!”
(Márcio Almeida)
Viver não é uma tarefa simples, ela nos exige malabarismos em tempo integral. As demandas diárias nos atropelam e a mente não descansa. Sempre alerta! Esse é o lema.
Enquanto vivemos um dia intenso de trabalho, os boletos sobre a mesa nos espiam à espera de pagamento. A consulta médica do filho não se marca sozinha. A geladeira vazia carece ser abastecida. A poeira sobre os móveis nos conta que já passou da hora de limparmos a casa. Roupas se empilham na lavandeira. A ração do gato acaba. O vaso sanitário entope. Aquele eletrodoméstico quebra sem aviso prévio. A reunião de condomínio insiste em existir.
Enquanto sobrevivemos a um dia repleto de demandas, doenças chegam. Nossos queridos morrem. Nossos relacionamentos se desgastam e o amor também morre.
O eterno equilíbrio entre razão e emoção é uma busca desgastante. A mente pira, o corpo sente e, muitas vezes, a tristeza se instala como aquela visita indesejada que faz morada sem ser convidada.
Precisamos nos policiar e ser mais gentis com nós mesmos. Temos que nos tratar com mais carinho. A autocobrança é um carrasco que não devemos alimentar. As autopunições pelos revezes vividos não devem ser cogitadas. A vida já nos penitencia demais, não podemos ser nossos próprios algozes. Que consigamos nos tratar como àquele amigo que vem desabafar em nossos ombros. Falamos tanto em amor-próprio, vamos somar a isso a generosidade-própria.
No capítulo 52 de Fabianices, “Ainda vamos rir de tudo isso em Nova York”, escrito lá pelos idos de 2018, eu disse:
“Quem disse que viver seria fácil? Não é fácil, não! É difícil pra caramba! Mas, como sempre digo, é divertido pra cacete. E é nos bons momentos que me agarro. Os momentos felizes são como aquelas boias grandes e coloridas que nos sustentam e nos ajudam a flutuar pela correnteza. Gosto de imaginá-las em formato de unicórnio, flamingo ou ainda um grande Sully, aquele personagem fofinho de Monstros S.A.”
Bons momentos! Essa a chave! Eles são a bateria que mantém nosso estoque de energia em dia. Os bons momentos compõem o relicário das nossas vidas. São nossos tesouros. E esse é um tesouro que ninguém pode nos roubar, ele é blindado, inclusive dos invejosos. Já está vivido, sentido, absorvido, realizado.
Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa:
“Relicário: 1. caixa, cofre, lugar próprio para guardar relíquias; 2. bolsinha ou medalha com relíquias que algumas pessoas trazem ao pescoço, por devoção; 3. Aquilo que tem um valor imenso; que é muito precioso.”
No relicário de nossas vidas cabem tantas relíquias. Cabem pessoas, histórias, aromas, comidas, vinhos, músicas, livros, poesias, filmes, peças, shows, praias, pores do sol, amanheceres, paisagens, lugares, amores vividos, amores sentidos, relações efêmeras, conhecimentos... E sempre vai caber mais! A vida é feita de reticências. Já disse isso por aí e repito.
Ao ler esse texto, vasculhe suas memórias, e permita-se revisitar aquela viagem à praia com os amigos de adolescência que se espalharam pelo mundo e já não tem mais contato. Aquele jantar a dois onde era a plateia apaixonada, deslumbrado pelo sorriso do outro lado da mesa. Aquele livro que leu ainda na infância e marcou para sempre sua existência. Aquele vinho que tomou sozinho numa viagem qualquer e nunca mais achou o rótulo para comprar. O perfume da sua avó, tão dela, tão único. O cheiro vindo das panelas enquanto aquele alguém especial cozinhava com amor. Viaje em suas lembranças e tome a dimensão do relicário da sua vida.
Espero que tenha lhe feito sorrir...