Adeus!
“Em nossas vidas, a mudança é inevitável. A perda é inevitável.
A felicidade reside na nossa adaptabilidade em sobreviver a tudo de ruim.”
(Buda)
Eu adiei por dois meses a ideia de escrever sobre isso. Não por dor, mas pela necessidade de entender melhor como essa experiência se processava dentro de mim.
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Já vivi muitos lutos, mas o da morte de alguém tão caro é a primeira vez. O universo me proporcionou o privilégio de só conhecê-lo agora, às vésperas de completar 47 anos de vida.
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Procuro bem as palavras, pois a maioria das que são utilizadas para descrever a morte não me representam. As descrições de luto também não me representam.
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Não consigo escrever, por exemplo, que meu pai nos deixou, porque ele segue presente, mesmo com sua ausência física. Ele não escolheu partir, uma doença fez a escolha por ele. Tampouco sou capaz de afirmar que ele partiu para o mundo espiritual e está ao lado de Deus, isso para mim é tão subjetivo. Escrever que ele descansou, então, é a pior das justificativas. Lembro sempre da minha mãe dizendo: “Se a morte é um descanso, prefiro viver cansada.”
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O meu pai morreu. Essa é a verdade nua e crua e não preciso de eufemismos para acalentar fragilmente o que sinto. A morte faz parte da estrada de qualquer ser vivo e essa é a única certeza que carregamos desde o nascimento.
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A ideia da morte de alguém querido sempre me assustou. Eu interiorizei todas as convenções e generalizei os sentimentos. Eu acreditava que o dia que meu pai chegasse ao seu ponto final, eu não suportaria. Imaginava que jamais conseguiria ouvir uma música italiana – lembrança tão viva dele – novamente sem me desmanchar em lágrimas. Que deparar com suas fotografias seriam apunhaladas no coração. E tudo tem se processado incrivelmente na contramão das minhas suposições. Mais uma vez, comprovo aquilo que sempre soube: a vida não obedece a regras. Agora sei que a morte também não.
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O porta-retratos sobre a minha mesa de trabalho segue intacto, e passo os meus dias na companhia do seu olhar que carrega a mesma doçura que carregou pelos seus quase 87 anos. As músicas italianas continuam fazendo parte da minha existência e não me causam dor, ao contrário, arrancam-me ternos sorrisos ancorados nas melhores lembranças. Confesso que estranho essa minha serenidade, mas é assim que tem sido. Sinto um amor intensificado que não consigo traduzir em palavras.
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Alguns me elogiam pela força, mas esse elogio não me cabe. Não há força, há um equilíbrio involuntário nos meus sentimentos. A gente não escolhe essas coisas, elas simplesmente se manifestam.
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Eu não carrego revolta ou sentimentos negativos em relação à sua morte. Acredito, sinceramente, que isso se deva a quem ele foi em vida. Eu assisti meu pai vivendo plena e apaixonadamente. Ele tinha uma alegria gostosa. Sua vida sempre foi pautada nas relações e o dinheiro era apenas um meio necessário para proporcionar bem-estar e realizar sonhos, os dele e os de quem estava à sua volta. Sua generosidade gritava alto. E esse legado ele nos transmitiu direitinho. Grande herança!
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A vida lhe impôs muitas adversidades, mas ele jamais entregou os pontos. Napolitano teimoso, atravessou um oceano na tentativa de se reinventar, e conseguiu. Morreu realizado, não tenho a menor dúvida. Não carregou pesares ao fechar os olhos pela derradeira vez.
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No seu último Dia dos Pais, escrevi neste blog:
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“Nunca enxerguei meu pai como um herói. A humanidade e a fragilidade dele sempre estiveram presentes na nossa vivência. Suas possíveis falhas nunca foram negligenciadas. A cada ato falho, que dá aquela arranhadinha na admiração, é um ”poxa, pai!”, mas nada que abale o nosso amor. Errar é humano e os pais humanos erram, mesmo que seja tentando acertar. Enxergá-los como mortais que são ajuda muito na relação. Idolatrias e idealizações são a base do fracasso de qualquer amor. Quanto menos expectativas, menos frustrações. Viver é deixar fluir! Amar é deixar fluir! Sou totalmente adepta do sentir mais e racionalizar menos os sentimentos.”
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E assim foi a nossa parceria de pai e filha por aqui. Não deixamos nada para depois. Sentimos tudo que pudemos enquanto estivemos juntos. Vivemos! Amamos! Fluímos!
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Outro fato que acredito contribuir para essa minha paz é saber que ele foi muito amado e sentia isso o tempo todo. Desde o início da sua doença, há seis anos, não esteve sozinho um segundo sequer. Eu, minhas duas irmãs e minha mãe, cuidamos dele com zelo e carinho. Tornamo-nos sua força física quando seu sistema motor começou a falhar. Nossos braços já não eram mais apenas abraços, eram também apoio e transporte.
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Ainda no último Dia dos Pais, já sentindo o fim cada vez mais próximo, também escrevi:
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“Personagem essencial na minha existência. Aos 86 anos de vida, dos quais tenho a honra e o prazer de desfrutar 46 deles, meu pai precisa de ajuda para ações básicas do cotidiano devido à uma doença degenerativa que o acomete. Faço a parte que me cabe para tornar seus dias menos dolorosos e difíceis, e para mim isso não é sacrifício algum, é amor se manifestando. O amor que ele sempre dedicou a mim volta a ele em forma de agradecimento. Cuidar dele nesta fase difícil é o conforto que restará quando ele não mais estiver entre nós. O que estamos vivendo nesse período nos aproxima, estreita nossos laços, aumenta ainda mais o nosso amor. Cuidarei até que a chama se apague.”
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Em 1º de dezembro de 2021, a chama se apagou. A saudade se instalou para todo o sempre, o amor explodiu, mas a tristeza não veio no meu pacote de luto. Sorrio muito e choro bem pouco ao lembrar do velho Gaetano Rongo, meu pai.
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O meu luto não me enlutou. Pode soar estranho dizer, mas ele me fez entender e aceitar coisas que eu sequer imaginava. Colocou-me em contato com sentimentos tão genuínos e de tanta paz.
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Um pedaço de mim morreu junto com ele, não há como negar, mas assim acontece em todos os lutos. Um tantinho de nós vai ficando pelo caminho no decorrer dos acontecimentos da vida, é inevitável. Viver é morrer um pouco a cada dia, é o que dizem, e concordo. Porém, estas partes que se despendem de nós não são perdidas, elas vão para nosso baú de memórias e podem ser acessadas sempre que necessário para nos acalentar, fortalecer, confortar.
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Meu pai me preparou para essa despedida, para esse adeus. Sua última noite de vida foi ao meu lado e ali entendi que eu precisava me desprender de qualquer egoísmo e fazê-lo sentir que ficaria tudo bem, e ficou tudo bem. O mundo é um lugar mais chato sem ele, verdade, mas sigo na luta, sem luto, repleta de amor e saudade.
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