Mito de cu é rola!
“A superstição transforma a divindade em ídolo,
e o idólatra é muito mais perigoso, pois é um fanático.”
(Johann Herder)
Desde os primórdios da humanidade, desde o mais antigo registro existente do comportamento humano, lidamos com diversas dualidades: o bem e o mal, o belo e o feio, o masculino e o feminino, e por aí vai. Resume-se um ser a isso ou aquilo, sem permitir-lhe navegar através das nuances que ligam as duas pontas. Polarizações! Rótulos são fartamente distribuídos e apontados e cobrados e, infelizmente, pouco rasgados.
Existe uma saga insana na busca por uma suposta e idealizada perfeição. E nessa busca chegamos aos deuses, aos heróis, aos mitos, aos santos de barro.
O ser humano parece precisar de ídolos para se escorar, para depender, para receber um aval. São usados como faróis que supostamente “iluminam” suas frágeis existências. Parece ser mais fácil seguir a comandos de alguém idealizado do que assumir as rédeas e as consequências das próprias cagadas.
Pensar dá trabalho. Posicionar-se tem lá seu preço. Assumir-se do jeitinho que se é, sem camuflagens, e se bancar, custa. Mais fácil fazer parte de um eco coletivo, de um senso comum, navegar a favor da maré, agradando ilusoriamente à maioria.
A idolatria cega. Ela nos leva a engolir, sem raciocinar, qualquer ideia elaborada e apresentada pelo idolatrado. A idolatria nos conduz ao fanatismo e esse, além de nos cegar, nos leva a ações perigosas. Estão aí os inúmeros ataques terroristas espalhados pelo mundo que ratificam o que tento aqui dizer.
Só existe quem manda, porque existe quem obedece, quem abaixa a cabeça diante de discursos bonitos edificados em areia movediça. E é na fragilidade dos idólatras que os idolatrados se agarram para seguirem comandando. Seja dentro de templos religiosos, seja sentado na cadeira da presidência da república, seja travestido de juiz.
Em 1989, aos 14 anos de idade, acompanhei incrédula e inconformada a ascensão de Fernando Collor de Melo ao poder, sob a alcunha de “O Caçador de Marajás”. Após 29 anos, foi a vez de Jair Messias Bolsonaro atingir o mesmo status, denominado mito, repetindo a exaustão o absurdo slogan “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”. Evoluímos zero por cento de lá para cá. Na verdade, estamos com saldo negativo.
Izanildo Sabino, político brasileiro, disse que “O caos num país começa a partir do momento em que o oprimido passa a considerar o opressor um ídolo.” Tão lamentável e tão verdadeiro. Estamos dando de bandeja o poder nas mãos dos nossos carrascos.
A novela Roque Santeiro foi ao ar pela primeira vez em 1985. Eu, então com 10 anos, apesar da pouca idade, absorvi de maneira exemplar o texto primoroso de Dias Gomez. Roque, “aquele que foi sem nunca ter sido”, cumpria involuntariamente seu papel de ídolo, foi elevado ao patamar de Santo. A cidade de Asa Branca vivia e sobrevivia as custas desse ser santificado. O “coronel”, a falsa viúva, o empresário, o padre, e outros personagens, comandavam o pequeno vilarejo, de acordo com seus interesses, escorados na lenda do mito. Usurpadores da fé, valiam-se do poder do prefeito, Florindo Abelha, eleito de acordo com as necessidades dos poderosos, que obedecia aos seus mandos e desmandos. O ídolo existia, fora forjado convenientemente, bastava explorá-lo através dos que os idolatrava. Qualquer semelhança da arte com a realidade não é mera coincidência.
Minha irmã mais velha tem uma teoria bastante peculiar. Ela sempre me diz: “Bi, o problema não é o cocô, são as moscas.” Bingo! Se não fosse a massa “emocionada”, dependente e que não se esforça em pensar e concluir, os mitos não teriam força, pois são menos que nada. Estes são criados e inventados para suprir a carência daqueles que não se esforçam para ser únicos, para fazer a diferença e só sabem falar “amém” para qualquer historinha que lhes contam.
Espero, realmente, que em 2022, estejamos caminhando para um lugar melhor. Que a dura lição que tem nos sido imposta nos últimos três anos tenha sido aprendida, pois ela tem nos cortado a carne, sangrado a alma e levado à fome e à miséria milhares de cidadãos brasileiros, para falar o mínimo.
Não serão os mitos ou os heróis que nos salvarão, serão os seres humanos, tão humanos quanto nós, comprometidos com a dor do próximo, com o coletivo.
Vamos em frente, acreditando, lutando, resistindo, e jamais esquecendo que não é bom tocar nos ídolos, o dourado pode sair nas nossas mãos.