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Prazer, câncer!

“Ninguém entende o que estou sentindo

Porque se entendessem

Não eram meus sentimentos

Eram só palavras conhecidas

Histórias banais e repetitivas

E não esses meus sentimentos

Tão inéditos

Tão únicos

Tão profundos...”

(Ruth Manus)

 

O câncer não manda recado. Ele simplesmente se apresenta. Chega sem aviso-prévio, instala-se como uma visita inconveniente e passa a ser companhia constante.

Eu não sou o câncer, mas ele faz parte de mim agora e, na maioria das vezes, é quem dá as cartas por aqui. Ele roubou a minha preciosa liberdade, meus quereres, meus sonhos, minha saúde, minha imagem e me impôs inúmeras restrições. Esse meu inimigo íntimo, o tal Carcinoma Invasivo, tomou para si as rédeas da minha vida e a mim só cabe obedecê-lo com um misto de raiva, medo e bravura.

São muitas as etapas a serem superadas. Muitas, mesmo! A doença é a protagonista temporária, mas arrasta atrás dela várias outras personagens. Cada uma com enredos próprios, repletos de problemáticas e urgências.

Quando o diagnóstico se confirma, o primeiro fantasma é o da morte. Na sequência surgem as incertezas sobre o tratamento e a temeridade do desconhecido. Como o corpo vai reagir à quimioterapia e toda aquela gama de procedimentos tão invasivos? É sabido que o caminho será árduo e que a vida entrará em “modo avião”. Nenhum horizonte minimamente agradável à vista. A ansiedade, aquele bichinho tinhoso, finca suas garras.

Até aí, ainda estamos no lado A da história. O tratamento começa e os achismos encontram suas respostas, seus espaços e as sensações passam a ser reais e conhecidas. O monstro é feio, mas não tanto quanto a nossa imaginação desenhou. Vez ou outra dá até para mostrar a língua para ele. E vamos aprendendo, de um jeito meio torto, a viver de cabeça para baixo, entre angústias e espasmos de fé e esperança. Eis que entra o lado B, aquele que, à princípio, ficou em segundo plano ofuscado pelo instinto de sobrevivência, mas que tem um baita poder devastador nessa montanha-russa descarrilada. O espelho torna-se um vilão e a imagem não corresponde àquela encarada por uma vida inteira. Faltam os cabelos, as sobrancelhas, os cílios. Sobram inchaço, quilos a mais, pele envelhecida, bolsas embaixo dos olhos e fadiga. Quem é aquela que agora me encara? Não a reconheço, mas ela me inspira e sinto um orgulho filho da mãe dessa danada. Gosto dela, mas sinto tanta saudade da outra. Tão dicotômico. Minha tarefa diária é lidar com a beleza dessa nova mulher que agora está “fora do padrão”.

Descobri que a minha identidade nada tem a ver com a minha aparência. Pobre daquele que tem apenas a estética como alicerce de si mesmo. É muito frágil e rui num piscar de olhos, sou prova disso. O belo tem transcendido e sido ressignificado por aqui. Recuso-me a me esconder, mesmo com todas as inseguranças que viraram minhas fiéis companheiras. Tenho erguido a minha careca, carregando todos os senões que esse momento me impõe, e vivido do jeito que consigo, permitindo-me ser mulher em todas as suas nuances. Não é uma tarefa fácil, mas me esforço para torná-la possível.

Eu sempre odiei que me chamassem de guerreira, por acreditar que o adjetivo romantiza o que é ser uma mulher sobrecarregada neste mundo patriarcal. Eu não deveria ter que lutar pelos meus direitos, por respeito ou igualdade, mas luto desde que me entendi gente. Já escrevi muito sobre isso. Porém, o câncer tem me ensinado que é preciso guerrear e com armas potentes. Finalmente me rendo ao termo e me enxergo como uma guerreira. A contragosto, é verdade, mas, ainda assim, uma guerreira. Tenho travado inúmeras batalhas à espera da tão almejada bandeira branca tremeluzente em meio ao vendaval.

O papel de vítima nunca me coube, mas ele também chegou no pacote. Não tenho poder ou ação sobre o que os outros sentem em relação a algo tão particular meu, mas tudo que alguns têm a me oferecer são seus olhares de pena ou palavras vazias e automáticas. É exaustivo ouvir incontáveis vezes “Deus sabe de todas as coisas” ou “Deus dá os maiores desafios para seus filhos mais fortes” e coisas do gênero. Que deus é esse que essas pessoas cultuam? Injusto colocar tudo na conta dele. Por que Deus salva uns e mata outros? Até onde sei, os bons também morrem. Desculpem-me, mas a minha relação com a fé está muito distante disso e deveria ser respeitada. Não sou adepta da meritocracia divina.

Sorrir diante de um “Força!”, “Tudo passa”, “Cabelo cresce” quando a vontade é silenciar o mundo e chorar. Nem sempre tenho força. Tudo passa, resta saber o que sobra e, enquanto não passa, sou eu que vivo e sinto cada segundo desta batalha. É o meu corpo que está maltratado e sofrido. Sou eu 24 horas por dia sozinha comigo mesma. É a minha vida que está em xeque. O cabelo crescerá, claro que sim, mas os impactos de meses de ausência são imensos. Não escolhi raspá-lo, então não cabem comparações com outras situações. Ele me foi tirado por uma doença cruel. Diante do exposto, pare, respire e pense antes de dizer qualquer coisa na tentativa vã de agradar alguém tão fragilizado. É fácil dizer "aguenta firme" quando não somos nós a sangrar.

Diante de tantos sentimentos em ebulição, frutos do momento difícil que vivo adornados por um bloqueio hormonal que faz parte do tratamento, escolho acolher a tristeza quando ela brota, levar tudo com humor sempre que possível. Xingar também é válido, e muito! Ajuda a alinhar os chacras. A doença está sendo muito bem cuidada pela ciência, é preciso cuidar da Fabiana que carrega a doença.

Quando digo que estou bem, não é porque estou totalmente confortável, é porque, dentro do que tenho vivido, encontrei um espaço de paz. O meu bem-estar mudou de forma. Tenho enfrentado um corpo que pede pausas, mas insisto em viver, sendo mulher, sendo profissional, sendo mãe, e sendo, sendo, sendo... Mesmo nos melhores dias, nada está exatamente bem, está tolerável, suportável, ajustado dentro do que é possível. Ainda não está tudo certo, mas também nada está perdido. O bem pleno, o estado de leveza, está logo ali, quase posso tocá-lo. Jamais me esqueço que caminho também é lugar!

A peneira da existência segue trabalhando, algo há de sobrar. Constatei que atrás de uma montanha existe outra montanha e sigo a escalada. Tudo está em movimento e nada será como antes. Vou encontrando meus oásis em meio ao deserto, já que não dá para pular etapas. A felicidade é uma ilusão, mas podemos nos abastecer de momentos felizes e eles existem, posso provar. Uma pitada de ilusão é como uma anestesia que nos leva além. Não recuso a minha dose. Crescer dói. Não existe mudança sem bagunça. A metamorfose é um processo complexo, mas necessário, e o resultado costuma ser incrivelmente lindo e libertador. O voo é certo. Conto com isso. A vida não para e eu também não! Como disse Cecília Meireles, "Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira”.

A doença me escolheu. Fui à faca, à quimio, à radio e vou além. Tento de tudo nessa luta contra a merda da finitude, mas jamais deixo de dançar no campo de batalha. Tem sido tempos loucos por aqui, mas engrandecedores. Desconfio que sairei desta gigante.

© 2025 por Fabiana Rongo e Jaimar Martins | Criado com Wix.com

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